Debruçada na janela, Ana, do alto
da colina contemplava a tarde que caía sobre a cidade. Lá embaixo estava
Manoel, que começava a escalada, vindo da mercearia onde fora comprar umas
coisas para a noite que se aproximava, noite de Natal.
Enquanto Manoel subia lentamente,
Ana se perdia em pensamentos e lembranças. Estava casada com Manoel há muitos
anos, ambos aposentados, ganhavam muito pouco e, por isso, pagava com
sacrifício o aluguel daquela casa. O único filho, José, estava longe, até bem
pouco tempo era um desempregado, e não dava notícias há meses.
Mais um Natal que passariam
separados, pais e filho. Ana recordava o tempo da juventude quando trabalhava
de sol a sol, mas os percalços da vida causaram-lhes esta situação de pobreza,
quase miséria. Muitos Natais foram bons, alegre, até fartos. E agora só restam
as lembranças a saudade e esperança de ter alguma coisa para reviver, mesmo que
parcialmente, esses bons momentos.
Manoel subia a colina cada vez
mais lento, pois sua saúde não o ajudava, e a sacola que trazia, mesmo com
pouca coisa, lhe pesava sobre os ombros, como os anos, a saudade, as
lembranças, as tristezas.
Ana continuava com o olhar
perdido no passado e nem percebia o burburinho da cidade que se preparava para
a grande noite, e a penumbra da tarde tomava conta do dia que estava indo
embora. No céu ainda avermelhado, a estrela d’Alva despontava como prenúncio de
uma linda noite. A brisa suave fazia o farfalhar dos pequenos arbustos que
rodeavam a casinha simples da colina.
Dentro, no canto da sala, a luz
do castiçal sobre o presépio começava a iluminar o ambiente. Era a repetição do
ritual de muitos e muitos anos: o presépio, a novena, terminada no dia anterior
e a imagem já toda enegrecida do Menino Jesus na manjedoura, os Reis magos se
aproximando, os pastores em adoração, alguns animais, uns já quebrados. Essas
imagens eram os únicos tesouros ainda preservados e constituíam símbolos de uma
fé que os mantinham em pé e com as cabeças erguidas.
A panela com a água fervia no
fogão, em fogo baixo, mesmo sem saber o que cozinhar naquela noite.
Debruçada na janela, distraída,
Ana só voltou à realidade, num repente, quando uma lágrima rolou pelo seu rosto
e caiu sobre suas mãos. Só assim pode perceber que Manoel estava à sua frente,
ofegante, e a esperar que lhe abrisse a porta.
A noite chegou de vez, sem a
presença da lua, mas com o céu salpicado de estrelas, uma mais brilhante que as
outras.
Na cidade, as luzes se confundiam
com as estrelas, o barulho dos carros com os fogos. Definitivamente, chegou a
noite de Natal.
Na colina, naquela casinha,
permanece a silêncio. Manoel abriu a sacola: um frango assado, uma garrafa de
vinho tinto suave, um bolo de forma, umas balas... Tudo que foi possível
comprar!
Ana, sem dar uma palavra apaga o
fogo que mantinha a água bem quente, acende o lampião e arruma a toalha sobre a
mesa. Manoel vai para a sala, senta-se e fica olhando o bailado da chama do
castiçal. Antes que os pensamentos o dominem por completo, Ana o chama:
-
Se está com fome, vem comer... eu estou!
-
Vou sim. Puxa, que canseira...!
Sentam-se. Ana reparte o que tem
para comer. A comida está quase gelada. Rezam umas desencontradas Ave-Marias.
Alimentam-se sem mais palavras. Bebem mais que o costume.
Passado algum tempo, um tanto
bêbado, Manoel levanta-se, dirige-se para o presépio e, estático, contempla a
manjedoura. Ana logo o acompanha e ficam ali, juntos, apoiando-se um ao outro,
rezando mais um pouco em silêncio.
A chama do castiçal está mais
forte, o presépio parece brilhar mais, realçando a imagem do Menino Jesus, que
mesmo enegrecida, mas de braços abertos, sorri para aquelas criaturas, velhas,
tristes, solitárias, saudosas.
De súbito, como que tomado por
uma nova energia, Manoel vira-se, segura Ana pelos braços, encara-a
profundamente e puxando-a para junto de si, diz com voz embargada e emocionada:
-
Feliz Natal, querida!
Ana, assustada e sufocada
responde, entre soluços:
-
Feliz Natal, meu velho!
Permanecem assim, unidos como
sempre o foram, num cálido, carinhoso e longo abraço.
Lá fora, na negritude do céu, um
risco veloz de uma estrela cadente, vida do infinito termina sua luminosa
trajetória, exatamente sobre aquela casinha... Deus, num sinal visível,
comunicara que estava participando e abençoando aquele Natal na Colina.